sábado, julho 03, 2010

A Mulher Nua

Plínio Salgado

Uma revista, dessas que exibem o nu artístico às donzelas casadouras e às meninas da Primeira Comunhão, publicou há dias, numa página inteira, a foto sugestiva de uma garota carnavalesca em trajes de Eva, com uma serpente de flores enroscada no alvo torço de Frinéia ondulante no ritmo do samba, como Afrodite a sair da concha do Mar Egeu.

A legenda participava aos leitores que a esplêndida ninfa - não sem os protestos gerais dos foliões - fora expulsa do Teatro Municipal pelo fato de erigir-se, naquele pudico e recatado ambiente de virtudes burguesas, como uma nota viva de escândalo a ferir a sensibilidade castíssima da grã-finagem carioca.

Vendo-se assim repelida pelas tradicionais virtudes da raça e pelos incontestáveis sentimentos cristãos que animam os folguedos de Momo nos três dias das bacanais e saturnais em que desafogam seu tédio as famílias, a sílfide resolveu sair, mas sair dançando. E de tal forma se portou nos movimentos coreográficos da retirada estratégica, desmanchando-se em reboleios de ritmos tão eloqüentes, que um trovão de aplausos saudou-a no saguão daquele templo de castidade em que se transformara o teatro principal do Rio, à falta de um autêntico santuário de Vesta.

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A fotografia era expressiva e convidava a meditar sobre as possíveis intenções da heroína desnuda.

De mim, confesso que o nudismo de tão ousada bailadeira não me pareceu imoral: antes, pelo contrário, interpretei-o como verdadeira pregação apostólica em prol da moralização dos nossos costumes.

Que fez a jovem carioca, naquela noite de tão esplêndido triunfo para a sua beleza corpórea, senão deduzir, da premissa burguesa do nosso cristianismo paganizado, a conseqüência lógica diariamente encoberta nas malhas dos sofismas com que se absolve de culpas o nosso mundo de hoje?

Muitos modos há de apostolizar consoante a inspiração do pregador e a psicologia do gentio cuja catequese se pretende. Uns se valem da palavra e outros dos atos e atitudes. E tanto os sermões verbais como os que se ministram à força de exemplificações variam na forma, estilo, timbre e mais originalidade que o gênio cria como instrumento de persuasão.

Contra os desmandos orgíacos de Roma, utiliza-se Catão da sua austeridade, e ainda que autores desconfiados vislumbrem nas admoestações do censor algumas frestas a entremostrar mal dissimulada hipocrisia, o terrível repúblico ficou a simbolizar, quando não a sinceridade de propósitos, pelo menos um método no aplicar corretivos.

O risco a que se expõem esses pedagogos, demasiadamente severos e amigos da ordem direta nas suas proposições morais, é a de serem tachados de refinados mistificadores. E não somente na pena dos críticos antigos, mas sobretudo na dos modernos, que jogam hoje com os dados da psicanálise para transformar em despeito de incapazes e fracassados as advertências dos moralistas.

Para os tais psicanalistas, se um homem aconselha a outro que não roube, é porque no íntimo sente inveja do ladrão, que é um indivíduo capaz de praticar o delito que o conselheiro não se sente com coragem de efetivar; se outro (ou outra, como no "Electra" de O'Neil, que é uma das mais edificantes bandalheiras do teatro moderno) sente repugnância pela atração incestuosa de alguém, é porque no fundo sofre o mesmo magnetismo pela sujeira; enfim, qualquer sujeito, que pugne pela moralidade dos costumes, vai para o catálogo dos freudianos como tipo a disfarçar a inveja de quantos destapam as comportas dos instintos.

Fica, assim, destruída toda a moralidade privada ou pública e os Batistas que pretendem corrigir as Herodíades e Salomés passam por indivíduos recalcados a pretender que outros se recalquem. Não faltarão aos moralistas, já não dizemos a cicuta de Sócrates, a fogueira de Savonarola, a Cruz de Cristo, mas as críticas mordazes e os motejos ridicularizantes, em nome da ciência e do progresso.

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Ora, assim pensando (ou não pensando coisa alguma como é mais provável em pedagogia puramente intuitiva) a garota do Municipal teria resolvido mostrar, em todo o esplendor da sua carne jovem, o verdadeiro motivo que reunia, naquele templo de pudicícia carnavalesca, os pais, os rapazes e as moças de família.

Inverteu ela, assim, os papéis. Em vez de ser apontada como hipócrita, desmascarou a hipocrisia da sociedade católico-pagã de donzéis e donzelas das missas de domingo e das praias pompeianas da talassoterapia e da heliopigmentação em que se espojam Ganimedes e Safos desabafando complexos e afinando o instrumental endocrínico nos extremos opostos dos recalques ultraistas de pasmosos assexualismos com que o charlatanismo científico pretende contrabater o conceito realista da filosofia verdadeiramente cristã.

Em vez de, (caso ali comparecesse a pregar um sermão de refundir Tibérios e Messalinas em forjas cândidas) em vez de arriscar-se a ouvir de algum folião ou foliona o epíteto de hipócrita, foi ela, a náiade pagã, quem atirou à face da plutocracia e da burocracia, que comandam a saturnal dos nossos dias, o mais veemente dos discursos que jamais boca de frade ousou jorrar de púlpitos ainda os mais atrevidos no escalpelar ulcerações ou esvurmá-las a ferro em brasa.

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Nua, inteiramente nua, como Frinéia diante dos juizes de Atenas, a nossa patrícia dançando o samba e rebolando as curvas afrodisíacas, exclamava em linguagem coreográfica:

- Acaso é a castidade que vos reúne aqui? Porventura estas músicas lascivas vos sugerem, ó velhos de Babilônia, idéias e pensamentos arcangélicos e visões puríssimas do Empíreo? E vós, Adônis e Narcisos, travestidos de roupas femininas, alimentais fantasias menos lúbricas do que as de Heliogabalo ou de Calígula quando cingiam roupagens de Vênus ou de ninfas, de tal maneira alucinados pelo fascínio das formas opostas ao seu sexo, que procuravam identificar-se cerebralmente com elas? E vós, Faunos e Sátiros espiritualmente caprípedes, farejando os perfumes mesclados ao odor dos suores femíneos, pretendeis renovar a façanha de Santo Antão no deserto, a resistir varonilmente às tentações envolventes? E vós, Virgens que ledes os romances analistas e as poesias eróticas da nossa época, e assistis aos filmes de longos beijos que galvanizam as platéias escuras e povoadas de tatos sutilíssimos, estais aqui por acaso para rezar ave-marias ao ritmo das músicas bárbaras? E vós, matronas que vos confundis com vossas netas e filhas na indumentária e nas atitudes, comparecestes a este lugar nada litúrgico para, pelo menos, vos engolfardes no romantismo daquelas velhas valsas que falavam em doçuras de líricos amores e devaneios castíssimos de heroínas de novelas antigas? E ainda todos vós, que mergulhais na onda tépida e aliciante dos pares em torvelinho sob o colorido das serpentinas e os vapores da champanha, estais acaso insensibilizados pelo bacilo de Hansen que vos eteriza a epiderme, ao ponto de não sentirdes o contato morno dos pares conchegados? Este baile é então um festim de eunucos ou algum místico entoar de matinas e laudes ao bruxuleio das lâmpadas sob vitrais em que o crepúsculo transcendentaliza a doçura claustral?

Tudo em vós, ou explícita ou implicitamente, são pensamentos voluptuosos, em cuja corrente bóiam as formas corpóreas esplêndidas e vivas, com maciezas ondulantes e curvas harmoniosas de Astartéias ou masculinidades ostensivas ou equívocas de Narcisos e Ganimedes. Ora, se esses são os pensamentos ocultos em vossas cabeças, porque os não quereis ver objetivamente?

Ouso dizer-vos, senhores, senhoras, rapazes e mocinhas, o que nem por sombras podereis supor. E é o seguinte: esta nudez completa, sem disfarces, é mais casta e mais pura do que as vossas roupas e as vossas atitudes.

A nudez, em si mesma, não é imoral. Se o fosse, não estariam nos altares a imagem de São Sebastião, as dos anjinhos barrocos a encimar frontarias de nichos e relevos de colunas e de púlpitos, e a do próprio Cristo pregado na sua Cruz. A atitude de dor do capitão romano varado pelas flechas, a de inocência dos anjos, a de misericórdia do Redentor de braços abertos, como que animam a nudez de uma euritmia sagrada, de uma expressão divina.

O Apolo do Belvedere, a Vênus de Milo, o Adão da Capela Sixtina, estão nus e há neles a castidade das expressões naturais.

O que torna imoral o nu são as intenções que nele se refletem, os pensamentos secretos que o animam. No meu caso (diz a dançarina expulsa pela assembléia do Municipal) o que vos escandaliza não é o nu do meu corpo, mas sim a lascívia que ponho nos ritmos com que interpreto tudo quanto se passa nas vossas almas. Sois como os velhos de Babilônia, que denunciaram Suzana porque a viram nua no tanque, por entre as frestas das árvores. Não era contra a nudez da formosa israelita que eles se revoltavam, mas contra a lascívia que requeimava o sangue decrépito e que dava intelectualmente ao corpo da banhista a própria expressão subjetiva de suas imaginações doentias.

Notai que Suzana banhava-se às ocultas, recatadamente. E vós? Não ides à praia publicamente? O simples fato de vos exibirdes não transfigura o vosso nudismo em ostentação das vossas formas, e se nessa ostentação sentis algum prazer, que nome dareis a esse prazer? Eu o chamarei a delícia de mostrar-se e a essa delícia chamarei deleite luxurioso. Etimológicamente, luxúria quer dizer exuberância, ostentação, transbordamento, expansão. Ora, quem se mostra, exubera, ostenta, transborda, expande-se e nisso há secreto gozo.

Além do mais não há apenas o deleite subjetivo de quem exibe e o faz com artes de provocar; há o gosto dos que vêem e sobre as fantasias objetivas engendram outras tantas pelo poder da imaginação.

Olhar é uma forma de apoderar-se. Tanto assim é que se pagam entradas nos cinemas, onde as fitas são alugadas aos olhos; e, em certas galerias de arte, onde os quadros e as estatuetas são alugadas à vista.

Olhos nada levam, dizem os espíritos superficiais. Eu vos asseguro que os olhos levam muito. Levam a imagem estampada no cérebro e se isso não for uma forma de posse, não sei o que seja possuir.

Mas o nu não está somente no alienar a roupa. Uma pessoa pode estar vestida e estar moralmente nua, do mesmo modo que uma pessoa pode estar nua, como as Virgens cristãs levadas ao suplício, e estarem moralmente vestidas.

Tenho a coragem de vos dizer, a todos que vos fantasiais de colombinas, arlequins, ciganas, baianas, havaianas, que estais tão nuas como a minha nudez, isto é, como a lascívia que a minha nudez põe na cadência de minha dança.

Nem mesmo a vossa dança é diferente da minha. Também, como eu, não tolerais hoje a delicadeza das valsas e das mazurcas. Os vossos médicos dirão que aquelas danças não passavam de sublimação do instinto sexual e em nosso tempo já possuis as válvulas de extravasamento daquilo que nossos avós chamavam sem-vergonhice e os esculápios denominam complexos: são as danças da regressão atávica, operando no campo da medicina moderna o mesmo que os juristas praticam refundindo as normas do direito internacional e revogando princípios jurídicos e éticos, para retrogradar a humanidade até à pedra lascada. Essas danças nada têm de comum com os ritmos harmoniosos da Grécia Antiga, nem com o ritmo coreográfico e quase litúrgico do velho Oriente; nem se parecem com os inocentes folguedos populares dos países cristãos; nem se aproximam da poesia e da graça do Romantismo que iluminou de sonhos e de suaves emoções o século XIX. Não: são danças inspiradas nos selvagens da África e oriundas do cruzamento psicológico de brancos e pretos da América do Norte. Essas danças não procuram o sentido da harmonia e da musicalidade delicada e espiritual; elas são diretamente sexuais e desbragadamente lascivas.

Qual a diferença entre as vossas havaianas de umbigo de fora e as vossas baianas mirandescas e esta nudez luxuriante com que me apresento? Qual a diferença entre o ritmo das vossas músicas e o ritmo do meu corpo nu? Qual a diferença entre os pensamentos dos vossos cérebros excitados pela champanha, pelo éter, pelo odor de mulheres e homens, e a realidade que exponho aos vossos olhos?

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E a dançarina desnuda, no ritmo da dança parece concluir:

- Puritanos! Fariseus! Ide, primeiro, compor vossas almas e depois julgai-me

Porque não será expulsando-me que modificareis um milímetro o vosso degradante mundo, os vossos costumes hipócritas, elevando, como seria de desejar-se numa sociedade cristã, a moralidade do povo brasileiro!

APÊNDICE HISTÓRICO SOBRE “A MULHER NUA”

Sérgio de Vasconcellos

No Carnaval de 1948, a célebre naturista Luz del Fuego, compareceu ao tradicional baile de Carnaval do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, patrocinado pela Prefeitura do então Distrito Federal, em trajes de “Eva”, apenas com uma serpente de fantasia enrolada no corpo... Indignados com tamanha demonstração de impudicícia, os diretores do Baile, arvorados em defensores dos valores morais, expulsaram a foliã. Como era de se esperar a imprensa, explorou avidamente o acontecido, publicando muitas fotografias reveladoras...

Diante de tanto farisaísmo, Plínio Salgado escreve um artigo de jornal, “A Mulher Nua”, uma das mais belas e duras páginas da Literatura Brasileira, denunciando de forma contundente o falso moralismo e a hipocrisia da sociedade brasileira, mais revoltantes que o nudismo escandaloso da carnavalesca.

Em 1950, Luz del Fuego, sem o consentimento de Plínio Salgado, publica o citado artigo no seu hoje raríssimo livro “A Verdade Nua”.

O próprio Plínio Salgado incluiu, como um capítulo, aquele seu artigo no livro “O Espírito da Burguesia”, editado em 1951 e, posteriormente, na obra “O Livro Verde da Minha Campanha”, que é de 1956.

Tudo continuaria no melhor dos mundos possíveis, se Plínio Salgado não resolvesse confrontar mais uma vez a burguesia brasileira, lançando-se Candidato à Presidência da República, nas eleições de 1955.

Não tendo o que dizer do Fundador do Integralismo, homem de extremada correção moral, os inimigos do Brasil optaram por trazer à baila aquele artigo, acusando Plínio Salgado de imoral e defensor do nudismo. Diariamente, a “grande imprensa” falava de “A Mulher Nua”, evidentemente sem transcrevê-lo, e distorcendo o seu conteúdo. Uma campanha de difamação sem precedentes na história política nacional.

Entre os que se empenharam nesta sórdida e repugnante campanha, achava-se o escritor Gustavo Corção, ainda na esquerda Católica, que tinha dois motivos para encarniçar-se contra o Autor da “Vida de Jesus”, um pessoal e o outro político:

Em 1948, Plínio Salgado fora convidado pelo Bispo Dom Ballester Nieto, por indicação do Vaticano, para participar das Conversações Católicas Internacionais de San Sebastian, que tinham por finalidade elaborar um documento que seria a contribuição da Igreja Católica à Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU. Sobre esta experiência, Plínio Salgado escreveu o magnífico livro ”Direitos e Deveres do Homem”, cuja leitura recomendamos a todos os Brasileiros. Pois bem, o Sr. Corção, que tinha a firme convicção, dado ser um dos líderes do laicato católico, que seria ele o convidado para representar a inteligência católica brasileira naquela prestigiada reunião, jamais perdoou Plínio Salgado por ter sido o escolhido, uma afronta...

Além desse injustificado ressentimento, o sr. Corção apoiava ao cripto-comunista Juarez Távora, também candidato à presidência pelo PSB.

Vários líderes religiosos vieram a público defender Plínio Salgado daquelas falsas acusações, mas vejamos apenas o que declarou Dom Antônio Lustosa, Arcebispo de Fortaleza: “Conheço o artigo de Plínio Salgado sobre o nudismo. Trata-se de uma clara condenação à decadência dos nossos costumes sociais. Considerar o artigo favorável ao nudismo é não entendê-lo ou, então, vira-lo ao avesso. Aliás a vida do ilustre escritor é incompatível com a doutrina pagã que o artigo verbera.”

Os que desejarem conhecer o relato do próprio Plínio Salgado sobre este episódio, deverão ler o “Livro Verde da Minha Campanha”, obra em que faz um balanço daquela sua campanha presidencial, e onde, no capítulo XI, trata do assunto.


2 comentários:

Anônimo disse...

Muito presente a colocação de Plinio Salgado e grande contribuição de Sergio Vasconcellos ilustrando repercussões e roteiros históricos das publicações que a obra teve ao longo do tempo.

costuras&costumizaçao disse...

Parabens a voê,pelas consideraço~es a Plinio Salgado,homem de brilho próprio,um grande idealista,e grande orador,a de não saber compreeder tão belo artigo;A Mulher Nua,mas a hipocrisia tudo distorce,fui criada com Plinio e sei do seu caráter de homem nobre e muito religioso.